Prólogo
Estou com vinte e seis anos e vejo que minha vida acabou-se.
Vivi nesta curta jornada terrena tudo o que uma pessoa com seus sessenta anos
viveu ao longo de sua existência. Mas é claro que, em questão de sofrimentos,
fui uma expert. Envelheci muito em
três anos aqui, enclausurada neste calabouço frio e escuro, onde fico
relembrando os fatos e as situações vividas desde a minha mais tenra infância.
Outro dia, pude ver meu reflexo em uma poça d’água que se acumulou no chão,
causada pelas diversas goteiras que caem do teto. Quase não me reconheci. A
maioria dos meus dentes caiu. Estou tão maltrapilha e suja! Eles quase conseguiram sujar, também, minha
alma. Mas consegui separá-la do meu corpo, para que não fosse maculada pela
perversidade humana.
Sinto tanto frio; estou tão
cansada e enfraquecida! As dores, antes insuportáveis, agora já parecem mais
brandas. Já quase não sinto mais a minha perna. A corrente presa à minha coxa
esquerda já tinha parado a circulação, e a sensibilidade já não era mais a
mesma. Estou presa a este objeto há um ano ou mais. Não me lembro exatamente de
quanto tempo estou aqui. A princípio, para evitar a loucura e a perda de
memória, fiz tracinhos nas paredes. Mas, com o tempo, fui me esquecendo até de me
levantar para comer o pão e a água que me trazem.
Temo não conseguir colocar
neste diário tudo o que me ocorreu durante toda a minha existência. Tenho a
esperança de um dia alguém me achar ou se lembrar de mim. Caso isso não venha a
ocorrer, sei que minha amiga Juanita encontrará um meio deste diário chegar até
às mãos de Maria. Quero que meus irmãos de alma saibam o que passei por amar e
por não negar minhas origens. Os horrores e as injustiças que aconteceram em
minha vida, envolvendo seres considerados acima do bem e do mal, deixo aqui
registrados. Não aumentei e nem inventei absolutamente nada.
Algumas pessoas que se diziam
com o poder de direcionar o destino de outras, só pelo simples fato de terem
nas mãos um documento chamado Bula Papal, tornaram a minha vida e a de outras
mulheres a mais miserável possível. Pessoas que se julgavam Deus ou mensageiros
Dele. Seres humanos como eu, mas que pareciam viver em um mundo mental paralelo
ao nosso. Parecia que, ao olharem uma mulher, viam nela outra forma de vida
aparente. Suas formas de manipular a população eram tão convictas que causavam
cegueira e histeria em massa – e, logo, uma espécie de aliança cega entre a
população e os inquisidores. Na verdade, a voz do povo não era a voz de Deus,
mas sim a voz do inquisidor.
Minha história é muito
complexa . Se algum dia esse diário for encontrado e lido por outras pessoas,
elas poderão ficar atordoadas e confusas com os relatos registrados aqui. Mas
que fique bem claro que este é o meu diário. O diário da minha vida terrena, onde
conto a minha trajetória como mortal, mulher, bruxa e como um ser humano
esquecido pelo mundo contraditório. Nesta história de vida passada, faço aqui
duas regressões e mostro o lado obscuro real da Inquisição. Conto como o
preconceito contra as mulheres era superior ao sentimento maior: o amor
verdadeiro. A religiosidade era usada para encobrir o lado negro dos sacerdotes.
O dinheiro comprava e vendia tudo, até a alma humana. Os sacerdotes e seus monarcas seguidores
fanáticos tinham uma única vontade: manter as mulheres submissas e a população
humilde e sem cultura sob os seus pés. Mas, na verdade, os monarcas também eram
marionetes destes discípulos do diabo.
Pessoas que se mascaravam com uma bondade hipócrita, para não mostrarem a
verdadeira face escondida debaixo de peles de cordeiros.
Espero, em nome de Deus, que a
humanidade um dia possa evoluir para o seu próprio bem. E que estas almas, ao
encarnarem, também possam redimir-se destes pecados que cometeram contra a
humanidade. Vivi em um tempo muito desequilibrado e hostil, em que mesmo os que
tinham certo estudo viviam na ignorância e no flagelo espiritual. As pessoas
não tinham o direito de ir e vir. As palavras, nem em pensamentos poderiam
permanecer. Se eu pudesse, aconselharia todos a refletirem sobre seus atos e as
consequências que podem advir deles. Amem como se hoje fosse a primeira vez.
Esqueçam o passado, deixem as mágoas e quem os magoou para trás. Porque a única
coisa que realmente importa é o amor e o perdão.
Espero, minha querida Maria,
que encontre este diário e que esta história da qual fez parte seja contada
para todos os nossos irmãos e irmãs, de geração em geração. Tenho certeza de que
não passei por todas estas coisas em vão. Aprendi muito com a senhora. Sua
sabedoria, bondade e benevolência foram minha fonte de inspiração para eu estar
aqui, hoje, lutando em registrar estas palavras.
Lembra-se, Maria, de quando mais
atrás me ensinou a agradecer a Deus por todos os segundos de nossas vidas,
mesmo que eles fossem os últimos? Agradeço, sim, a Ele, mas nunca me esqueço da
senhora. Minhas orações são para você, bem como meu amor e gratidão, minha amiga,
minha mãe. Sim, pois a senhora foi a única mãe que conheci.
Embora minha vida tenha sido
tão curta, pude refletir e compreender que nunca devemos parar de lutar pelo que
sonhamos e acreditamos. Sempre lutei e nunca temi ou me arrependo de ter
chegado às últimas consequências. Nunca desisti do meu único e verdadeiro amor,
embora ele tenha me traído e me abandonado. Nunca desejei mal a ele, mesmo
sabendo que pode estar nos braços de outra mulher. Não odeio nem mesmo meus algozes, pois fazem
parte da construção da minha história. Aceitei o dom da mediunidade graças à
senhora, Maria, pois aprendi a ser responsável e mais humana. Sei que são
curtos os meus dias aqui, minha cara amiga. Mas morro com dignidade e orgulho
em saber que me assumo como sou: uma bruxa.
A senhora ensinou-me que a
responsabilidade de um médium dobra quando ele ensina alguma coisa a outra
pessoa. Espero estar sendo coerente com as palavras aqui. Pois, assim como fui
sua discípula, terei discípulos que ouvirão minha história e far-me-ão de
exemplo. Sei desta responsabilidade e não quero ser uma lenda e nem um exemplo,
pois também falhei. Apenas quero contar como tudo aconteceu comigo. Achei que,
por amor, poderia superar os sofrimentos que me seriam impostos. Mas, agora,
tenho certeza de que não sabia o quanto o ser humano pode ser cruel em
arquitetar uma forma de torturar o outro. A maldade do ser humano é infinita e
sem igual.
Seguindo com a minha
história...